Carlos Zorrinho: “O PS precisa de descer à terra”
Carlos Zorrinho é candidato a Évora e pede “uma maioria estável para governar”. Nesta entrevista, o ex-deputado europeu fala da sua estratégia para ganhar a câmara à CDU, em limite de mandato, e faz um diagnóstico do que falhou na governação socialista do país. As presidenciais também são tema de uma conversa que vai para lá das eleições.
Depois de dez anos como deputado europeu, e da renovação total da equipa de eurodeputados do PS levada a cabo pela direção de Pedro Nuno Santos, Carlos Zorrinho é agora candidato à presidência da Câmara Municipal de Évora. Mais de uma década de governação comunista depois, a cidade está “estagnada” e “cansada” e o Partido Socialista pode ter de capitalizar, já que este é o último mandato de Carlos Pinto de Sá.
Na autárquicas agendadas para 12 de Outubro, muda pelo menos um terço dos atuais presidentes de câmara. Do total em final de mandato, 53 são socialistas. Desde as primeiras eleições autárquicas democráticas, em 1976, há 24 municípios que nunca mudaram a cor política, nove são do PS e três ficam no Alentejo. Évora não é um deles.
Carlos Zorrinho, um defensor da regionalização, quer fazer do concelho um motor de desenvolvimento regional e garante que se for eleito não haverá desperdício de fundos comunitários por falta de projetos. E recorda o Programa Operacional Regional do Alentejo e o que foi possível fazer com a gestão descentralizada de 500 milhões de contos, hoje 2.500 milhões de euros.
O que o liga a Évora?
O meu pai é de Santiago do Escoural e a minha mãe nasceu em Casa Branca, concelho de Montemor-o-Novo. No passado, fui duas vezes membro da Assembleia Municipal de Évora e, também em dois mandatos, membro da Assembleia Municipal de Montemor-o-Novo. O meu sangue é alentejano.
Tinha família em Óbidos, o meu pai era militar, estava em Mafra numa altura em que as deslocações não eram tão fáceis, e a minha mãe foi para Óbidos, para a casa da família, onde nasci. Vivi em Óbidos alguns anos muito miúdo, depois fui para Moçambique, onde nasceu a minha irmã, e para Angola.
Quando voltámos, no 25 de Abril, estive o primeiro ano em Óbidos e, quando o meu pai voltou, em 1975, fomos para Évora, onde estudei desde essa altura, fiz a parte final do liceu, a universidade, a minha carreira até ser catedrático, aos 40 anos.
Já era crescido quando veio de Angola.
Tinha 15 anos.
Como foi o regresso a Portugal e, no caso, ao Alentejo? Era um jovem adolescente, foi fácil adaptar-se?
Tinha primos e tios que viviam em Luanda, o último sítio onde estive antes de regressar, e que deixaram tudo para vir para Portugal. Regressar não foi fácil e para o país foi uma grande prova de capacidade de acolhimento – e foi uma lufada de ar fresco, porque os retornados trouxeram outra dinâmica, outra forma de estar, outra abertura de espírito.
Para mim, foi sobretudo compreender o que era viver numa sociedade mais fechada. Lembro-me de, nos primeiros dias, ir para a escola de calções, o que aqui não era habitual. E lembro-me de que não havia Coca-cola, lembro-me de não saber as mesmas músicas, de estar mais frio… Mas adaptei-me, primeiro em Óbidos e nas Caldas da Rainha, onde fiz o 5.º ano, tenho algumas memórias desse tempo, depois disso em Évora, sempre.
O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e antes disso António Costa, vieram reacender o tema das reparações históricas. Tem uma opinião sobre o assunto?
A história é a história. E faz-se todos os dias. Reconhecer que o colonialismo foi longe demais é absolutamente normal, penso que as desculpas foram pedidas, esses países conseguiram a sua autonomia, e a melhor maneira de fazermos uma boa reparação histórica é termos agora uma excelente relação e, por exemplo, aprofundar as relações com a CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa].
No Parlamento Europeu, fui presidente da Associação Parlamentar Paritária África, Caraíbas, Pacífico, União Europeia, fui a todos esses países, e isso sim, o diálogo entre os povos, a compreensão do que aconteceu, que há momentos históricos e que agora temos de colaborar mais do que antes, é uma forma de fazermos uma reparação histórica.
A União Europeia tira partido dessas relações ou ainda estamos muito aquém do que podia ser feito?
Tinha de haver um processo de transição. A União Europeia continua a ser o maior parceiro económico e social de África e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), mas o nosso modelo de funcionamento é um modelo muito burocrático, mesmo com o programa Global Gateway ou com o mecanismo de resiliência, através dos quais prestamos muito apoio, fazemos muitos investimentos.
Acompanhei muitos deles, normalmente investimentos muito burocratizados, relativamente lentos, muito exigentes nalguns critérios, o que leva a que, por vezes, os americanos, os turcos, os chineses ou os russos tenham soluções chave-na-mão mais rápidas. Eu costumava dizer que a Rússia tinha o poder, a Turquia o resultado imediato, a China a chave-na-mão e nós [União Europeia] propúnhamos aquilo que é a co-criação, ou seja, o “fazer com”.
E “fazer com” não se faz de um momento para o outro. Muitas vezes o sentimento do mundo de hoje, que é muito acelerado, é de que aquilo que é rápido é mais apetecido do que aquilo que é mais embrenhado. Mas a verdade é que, a longo prazo, as democracias, os direitos humanos, o desenvolvimento humano acabam por triunfar.
Já voltamos à Europa, mas antes queria regressar a Portugal. José Luís Carneiro é a pessoa, o líder que pode levar o PS a virar o jogo a seu favor outra vez?
Penso que a grande vantagem de José Luís Carneiro, e foi isso que me fez também ser um dos seus primeiros apoiantes, quando foi a disputa interna entre José Luís Carneiro e o Pedro Nuno Santos, é que traz a realidade para a matriz política.
Se dizemos que a política precisa de ir às raízes, que a política precisa de tocar as pessoas, que a política precisa de ser de proximidade, José Luís Carneiro tem o perfil: foi presidente da Câmara de Baião, foi secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, conheceu a nossa diáspora toda, foi secretário-geral adjunto do PS, conhece o partido.
Enquanto muita gente, espetacular, extraordinário, com uma formação exemplar, grandes políticos levam a matriz política que desenvolveram na universidade, nos think tanks à realidade, mas não conhecem a realidade, conhecem apenas a matriz política.
Neste momento o PS precisa de descer à terra. Se alguma coisa aconteceu ao PS nestes oito anos de poder é que deixou de ter os pés na terra, passou a viver nos gabinetes, nas políticas magníficas, todas excelentes, mas que não tocavam na terra. E não perceberam a alteração que estava a acontecer. Não percebemos, porque sou do PS e não refuto as responsabilidades. Não tínhamos os pés na terra.
José Luís Carneiro é alguém que tem os pés na terra e agora vai ter de conseguir transpor isso para na matriz política. Com um outro desafio, que aliás tem referido, é que quer também ter um papel importante na reformatação do que é a social-democracia na Europa e no mundo hoje.
O que é isso de reformatar a social-democracia?
Para alguém que esteve no Parlamento Europeu, para alguém que continua a acompanhar as notícias e as questões da política europeia e da política global, isto é algo que me preocupa muito, porque ser social-democrata hoje, ser progressista, que é mais importante, não pode ser com as mesmas ferramentas nem com o mesmo tipo de abordagem, é preciso ser progressista e popular, ser progressista e tocar as pessoas.
Ser progressista já não é uma teoria de vanguarda, que arraste os povos. Não temos de arrastar os povos, temos de estar com eles. Portanto, é preciso repensar o que é ser de centro-esquerda e ser social-democrata.
Desse ponto de vista, também, José Luís Carneiro é diferente de de Pedro Nuno Santos?
Uma das diferenças entre José Luís Carneiro e Pedro Nuno Santos, e que se vê sempre no PS, é que, à exceção da vitória de Jorge Sampaio nas eleições autárquicas de Lisboa contra Marcelo Rebelo de Sousa, o PS nunca ganhou nenhuma eleição em frente de esquerda, sempre ganhou eleições quando conseguiu associar-se ao centro transformador da sociedade.
Quando ganha o centro transformador da sociedade, a partir daí transforma a sociedade à esquerda, se for de esquerda, ou à direita, se for de direita. Mas é um erro pensar que partidos de regime como o PS ou o PSD podem ser frentistas. Não podem. Na minha opinião, esse foi um dos erros estratégicos do PS que o levou a ter este resultado, ainda que, sejamos verdadeiros, Pedro Nuno não fez uma campanha frentista, não se posicionou como frentista. Agora, a perceção que existia em relação a ele era essa, bem tentou na fase final jogar meio centro, mas na cabeça das pessoas já era ponta-esquerda. José Luís Carneiro é defesa-central.
O que é mais tóxico para a democracia no mundo?
Em primeiro lugar, aquilo que é mais tóxico para a democracia no mundo são as desigualdades. As pessoas que têm muita dificuldade em colocar comida na mesa e vêem outros com tudo, para os quais o dinheiro não conta, naturalmente vêem nos partidos que têm governado os grandes responsáveis por essa diferença. Pode ela ser direta ou indireta, pode ter a ver com as evoluções das tecnologias de informação, mas a verdade é que vêem isso. A verdade também é que a emergência destes partidos populistas obriga estes partidos de regime a renovarem-se ou a morrerem. E este é o desafio do PS, como aconteceu com o PS francês, que está agora a renovar-se e a começar a crescer.
O que aconteceu nas últimas legislativas pode replicar-se nas eleições autárquicas?
A candidatura que temos no terreno é uma candidatura do PS, mas é uma candidatura que gerou o movimento “Évora Viva”, que tem muita gente. E isso reflete-se nas listas, a maior parte das pessoas são independentes, gente que, sobretudo pela sua competência, acredita neste projeto e juntou-se a ele.
Mas as autárquicas são muito diferentes das legislativas. Todos os estudos que temos mostram que as pessoas votam sobretudo nos candidatos que conhecem. Em relação ao Chega, é a primeira vez que numas autárquicas concorre enquanto partido que, entretanto, ganhou dimensão nacional.
Já antes vimos movimentos assim. Por exemplo, o Bloco de Esquerda chegou a ter um peso relativamente forte na Assembleia da República [19 deputados] e nunca teve mais do que uma câmara [Salvaterra de Magos]. O CDS ficou praticamente sem deputados e ganhou seis câmaras. Portanto, a relação entre autárquicas e legislativas não está demonstrada. Mas o Chega é um fenómeno novo.
Depois das legislativas, Rui Tavares, do Livre, sugeriu que a esquerda se unisse contra o Chega e formasse coligações onde o risco de perder para este partido é maior. Está de acordo?
O que acho é que os partidos têm de fazer coligações com as pessoas e com a sociedade civil, e é isso que estamos a fazer. Todos os dias reunimos com associações, com escolas, com as empresas, com a sociedade civil do concelho.
O que os partidos têm de fazer é sair da bolha – uma expressão muito usada -, da discussão cruzada, política, muitas vezes feita nas redes sociais, e descer ao terreno, falar com as pessoas.
Como disse, vivo em Évora desde 1975, embora muitas vezes durante a semana não estivesse lá, tenho outras coisas, e aprendi mais sobre Évora no terreno nestes seis ou sete meses que levo a calcorrear os bairros, as associações, aquilo que acontece em Évora, do que nos outros anos todos. Esta ligação às pessoas é que é muito importante e é também a melhor forma, o melhor antídoto, para combater movimentos populistas como o Chega – tentar mostrar que estamos ali para tentar resolver os anseios e as desilusões das populações -, não é a coligar os partidos para juntos terem mais votos que o Chega.
Espero que muitas pessoas que votaram no Chega nestas eleições nacionais se revejam, na proximidade, no movimento Évora Viva, que é apoiado pelo PS.
Essa proximidade, no entanto, parece só existir de quatro em quatro anos, em ano de eleições. Tal como as obras. Faz sentido?
Não se deve confundir políticos com a bolha política. Possivelmente, mais de metade dos presidentes de câmara vão ser reeleitos, o que significa que fizeram a sua política de proximidade.
A câmara de Évora é liderada pela CDU desde 2013, mas era o PS que estava no poder em 2009. De lá para cá, perdeu qualquer coisa como quatro mil votos. Como pretende recuperá-los?
A câmara de Évora, entre outras coisas, tem sofrido de um problema complicado. Por um lado, tem tido uma liderança da CDU, que pretende que Évora não cresça, que Évora se acomode, que Évora não mude muito o seu tecido social, porque é isso que lhe permite continuar a ganhar.
Mas o mais complicado, do meu ponto de vista, é a fragmentação que existe ao nível do poder municipal – que é legítima, foram os eborenses que escolheram, mas é preciso ter consciência do mal que faz à cidade. Neste momento, a câmara é governada por uma força que tem dois vereadores, o PS também tem dois vereadores, o PSD tem dois e um grupo independente tem um vereador.
Essa fragmentação reflete-se em quê?
Transmite-se à fragmentação do tecido social do concelho, à fragmentação do município. Tudo isso torna mais difícil a dinâmica
associativa, a dinâmica de empreendimento, a dinâmica de sonho, a dinâmica de concretização. O que tenho pedido e peço aos eborenses é uma maioria estável para governar.
A equipa é toda da minha responsabilidade, mas, em particular, os primeiros quatro candidatos, que sendo eleitos darão um governo estável e à altura de cumprir o nosso objectivo de transformar Évora em dez anos, com resultados visíveis em dez meses, foram escolhidos com base na complementaridade de competências, na experiência e valências concretas, no conhecimento da cidade e do concelho. No fundo, para ter à escala do governo da cidade um especialista na área do urbanismo, um especialista na área da limpeza, um especialista na área da cultura, um especialista na área da educação, ou seja, um governo para transformar o concelho.
Se não for eleito presidente, ficará como vereador?
Não estou a pensar nisso, ainda. Eu sou candidato a presidente, se não for presidente da câmara, verei qual a atividade em que posso ser mais útil à minha cidade e ao meu concelho.
Quais são para si os principais desafios que Évora enfrenta?
O principal desafio da Évora é recuperar a dinâmica que perdeu. Évora é neste momento uma cidade que toda a gente reconhece como extraordinária pela sua história, pela sua identidade – vai ser capital europeu da cultura -, mas que está de alguma maneira parada, estagnada, diria mesmo, porque é verdade e as pessoas sentem isso, suja, onde é difícil de circular, cansada.
Évora precisa de uma revitalização forte, porque tem todas as condições para ser uma grande capital europeia ao sul. E isso não se consegue com uma medida solta, com uma bala de prata, consegue-se se houver uma visão de futuro que mobilize as pessoas, que as ponha a trabalhar em conjunto.
Os novos autarcas terão a pressão da reta final da execução das verbas do PRR, que tem como limite 2026, terão de negociar uma nova Lei de Finanças Locais e terão de executar projetos com fundos do PT2030. Se ganhar, como vai fazer isto?
Vou ganhar [ri]. As câmaras já fazem um grande trabalho, mas Évora tem perdido muitos recursos e muitos fundos europeus, exatamente por não ter essa capacidade de ter projetos preparados. Executar os fundos vai depender de haver ou não alguma extensão de prazos do PRR. Se não houver, vai ser difícil, porque de facto a autarquia atrasou-se muito na elaboração dos projectos.
Já fui muitas coisas e tive uma função que me marcou muito: durante três anos, no final do século passado, fui gestor do Programa Operacional Regional do Alentejo. Se se lembra, ia haver um referendo, que só ganhou no Alentejo, perdeu nos outros sítios todos, e António Guterres decidiu criar uma estrutura própria para fazer a gestão descentralizada de 500 milhões de contos, hoje 2.500 milhões de euros.
E com esse programa foi possível fazer Alqueva, a Escola de Turismo de Portalegre, a recuperação de muralhas, os aeródromos, que se estendeu aos aeródromos de Évora e de Ponte de Sor, agora tão importante, recuperar todo o projeto de Sines, o Parque de Feiras e Exposições de Beja, enfim, um conjunto de obras em nome de uma estratégia de território em que nada se perde.
O que é fundamental é ter essa estratégia de território e não, como funcionam hoje muitos fundos comunitários e outros, que são repartidos e partilhados um bocadinho para cada concelho, uma fatia para casa município que depois não resulta, porque não há esse pacto.
E qual é a estratégia para Évora e que papel pode ter o concelho a nível nacional?
Vou contar-lhe uma história muito recente. Fizemos a Convenção Autárquica no dia 29 de Junho, dia da cidade de Évora, dia de São Pedro, enchemos o Teatro Garcia de Resende, num dia de muito calor, e estivemos mais de quatro horas a discutir ideias programáticas em temas fundamentais como educação, saúde, desporto, segurança, limpeza. Foi uma discussão muito rica.
José Luís Carneiro, que tinha sido eleito secretário-geral do PS na véspera, foi fazer a sua primeira intervenção a Évora. No caminho disse-me: “Carlos, porque é que não anuncias duplicar a população da cidade até 2050?” Mas eu não gosto da ideia de Évora cidade-média, Évora é uma grande cidade e quero fazer dela uma grande capital europeia ao sul. Não é do sul, é ao sul.
Uma grande capital europeia ao sul, uma cidade com história, como Sevilha, como Granada, como Cádiz, como Mérida, como Cáceres. Uma grande cidade, afirmativa, vai ser Capital Europeia da Cultura, mas não pode ser só em 2027, vai ter de ser uma capital europeia da cultura sempre, com um festival de cultura forte, anual ou bienal.
Assim só, ter como ambição duplicar a população da cidade de Évora até 2050, é o mesmo que estar a dizer aos autarcas vizinhos que vou secar o Alentejo. E eu não quero crescer a puxar os habitantes das outras terras para Évora. Ora, se houver um pacto, um acordo com o poder central e também europeu, com uma estratégia de desenvolvimento, de investimento, como por exemplo fazer um cluster de aeronáutica e espaço, um centro de tratamento de dados (temos a segunda universidade mais antiga do país), para dar alguns exemplos, isso permite que Évora mas também as ditas cidades médias duplique a população e o faça de forma sustentável.
Mas obriga a fazer os tais pactos de desenvolvimento do território de que José Luís Carneiro tem falado. O PROT Alentejo foi um pacto entre aqueles 47 concelhos para gastarem o dinheiro onde havia mais potencial porque dali iria surgir desenvolvimento para todos. E é isso que é preciso.
Mas o Alentejo parou, ainda agora disse que Évora estagnou. Porquê?
Pois, porque não houve regionalização. Com muita pena minha.
Outro referendo está fora de causa?
Infelizmente, logo na altura esta intuição – espero sempre estar enganado: vamos ter regionalização quando já não houver fundos europeus. Neste momento, é muito difícil o centralismo abrir mão da capacidade dos territórios se autogovernarem e terem os recursos para isso.
Sou um defensor da regionalização administrativa e acho que era muito importante retomá-la. O que tem sido feito é um processo que também é interessante, a reforma das CCDR [Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional] também é um processo de descentralização. Mas, não confundamos, é um processo de municipalização: os municípios agregam-se nas comunidades inter-municipais e trabalham em conjunto.
A municipalização tem maior risco de fragmentação do que a regionalização. E a regionalização é compatível com a municipalização, porque nos dá aquilo de que eu falava há pouco, visões gerais e estratégicas, e a municipalização dá-nos a capacidade de isso ser aplicado em cada um dos territórios.
Falou em clusters. Há quem defenda que Portugal devia desenvolver um cluster na área da defesa. Montenegro comprometeu-se com 3,5% do PIB para a Defesa, mas nem os 2% acordados há dez anos cumprimos. Mais olhos que barriga?
Sobre o tema da defesa e segurança gostava de dizer duas coisas. Nós, sobretudo Portugal – porque há diferentes culturas também à escala da União Europeia, somos 27 países -, devemos ver a capacidade de defesa e segurança como o melhor caminho para defender a paz. Ou seja, temos sobretudo de desenvolver uma capacidade dissuasora.
Neste sentido, a minha perspetiva sobre a defesa e a segurança na Europa é a do reforço da capacidade da própria União Europeia produzir os bens, as armas, os sistemas que desenvolvam a sua indústria e as suas capacidades.
Também imagino que a defesa europeia não deve ser, e se for será um grande risco, uma defesa feita pela soma de 27 estratégias de defesa, em função de 27 países que vão até 2035 colocar 5% do PIB na defesa. Isso será muito perigoso, porque 5% do PIB da Alemanha é muito, 5% do PIB da Eslováquia é menos. E, se criarmos à escala do território europeu diferenciais de potencial de defesa ou de ataque, estamos a criar um quadro que foi o evitámos que se criasse há mais de 60 anos.
A UE é um projecto de paz porque tem um projecto de cooperação. A interdependência é o grande segredo europeu. O que quero dizer é que devemos evoluir – e sei que agora a pressão do Sr. Trump é muito grande, a pressão da guerra é muito grande. A melhor defesa da Europa não significa que os 5% do PIB da Alemanha sejam gastos na Alemanha.
Mas queremos que os 5% de Portugal sejam gastos a desenvolver a indústria portuguesa.
Portugal, por exemplo, é uma porta atlântica fundamental na defesa da União Europeia. Se queremos defender a União Europeia e ser autónomos na defesa da União Europeia, temos de investir bastante na capacidade da indústria.
Évora tem várias condições, a universidade, e bem, está-se a adaptar, criou agora um curso de Engenharia Aeronáutica, temos a Embraer, que agora é a Aernnova Evora, temos o o CEiiA [em parceria com a brasileira Desaer e a Seamax Aircraft Lda] a desenvolver um avião de forma completamente integrada. Mas quando se fala em Évora, fala-se de uma rede que inclua Ponte de Sor, Alverca, Grândola, Beja. Podemos, de facto, ser o grande polo industrial, aeronáutica, espaço, dados, novas tecnologias, drones, tudo o resto. Até porque temos outra coisa fundamental, que é um céu espectacular, um céu limpo e um território limpo, que é muito importante para todas essas actividades.
Portanto, não desistirei de fazer de Évora aquilo que ela pode ser, que é uma grande referência, não à escala nacional mas à escala global, nesse domínio. Mas, como disse há pouco, isso é totalmente complementar com ser uma cidade de um concelho histórico, com uma forte identidade, com desenvolver toda a área associada à gastronomia e aos vinhos, ao património, mas, também, já que vai ser Capital Europeia da Cultura em 2027, ser capital da cultura todos os anos com um festival, tem de ser ainda negociado, que se posicione à escala global.
Temos que pensar assim para conseguirmos desenvolver no plano local e aumentar a auto-estima e a força e a mobilização dos eborenses para este desafio.
Onde vê Évora, não em 2050, como dizia a José Luís Carneiro, mas em 2030?
Em 2030 estará com muita coisa a acontecer, mas o nosso projeto é para transformar Évora em dez anos. Mas vamos apresentar um plano de emergência e há coisas que não podem esperar: os arruamentos que estão completamente destruídos – a Capital Europeia da Cultura vem-nos ajudar a pressionar nesse sentido -, temos de melhorar muito o estacionamento, temos de tentar fazer algumas coisas para melhorar o trânsito, temos de alterar o mobiliário urbano, a sinalética, temos de assegurar a limpeza e a higiene.
A habitação também não pode esperar dez anos. Conseguimos finalmente, os vereadores e a Assembleia Municipal, mas sempre em grande articulação com a candidatura, que Évora tenha um Plano Director Municipal (PDM). Nos últimos quatro anos, o PDM esteve congelado. Conseguimos com isso 320 hectares de terrenos urbanos que não foram desclassificados, melhorámos o sistema de taxas, e isso significa que no próximo plano de urbanização tenhamos uma capacidade de criação do ponto de vista de habitação, quer através de parcerias, cooperativismo, investimento privado, com um desenvolvimento muito maior.
Espero que Évora seja muito mais atrativa daqui a três ou quatro anos, tenha muito mais gente e muito mais investimento. E, daqui a dez anos, sim, imagino Évora à altura da sua história e do futuro. Recordo que Évora foi, durante o tempo dos “achamentos”, a segunda capital do reino, e já no tempo dos romanos era uma das cidades mais importantes do sul da Península.
A câmara está descapitalizada, tem pagamentos em atraso, a corda na garganta, como se costuma dizer. Como é que isso se resolve?
Eu sei, sei que a câmara está descapitalizada, sei que está desorganizada e sei que muita gente está desmotivada. Ao mesmo, quero ter muito orgulho em dizer que vou ser, quanto for, presidente da Câmara Municipal de Évora. Mas só ficarei satisfeito, só direi com alegria que quero dizer se os trabalhadores da câmara também disserem “eu tenho orgulho de trabalhar na Câmara Municipal de Évora”.
A câmara precisa de deixar de ser um bloqueio, como hoje é vista por toda a gente – “como é que isso se faz sem passar para a câmara?” é o raciocínio imediato das pessoas e é incrível que isso possa acontecer, seja na câmara, seja em qualquer outra instituição pública -, para passar a ser parte da solução.
Duas medidas que adotará imediatamente se for eleito presidente?
De forma breve, duas coisas muito importantes que penso fazer assim que chegar: revisitar todos os projetos que foram feitos na câmara e que não foram aplicados, atualizá-los e mandar fazer os que faltam para concretizar a visão da cidade daqui a dez anos, porque a cidade tem perdido muitos financiamentos, muitos investimentos, porque não tem projetos.
Por exemplo?
Ainda agora, para a Capital Europeia da Cultura, perdemos o pavilhão cultural e multiusos, que terá de ser feito e vai ser feito com outros instrumentos. Mas perdemos porque o projeto não está feito com maturidade.
Além disso, tínhamos 70 milhões para habitação no PRR, grande parte vai ser perdida porque não há projetos com maturidade, espero que ainda seja possível recuperar alguma coisa se, como disse há pouco, houver uma prorrogação do prazo. Perdemos a escola de dança, prevista no âmbito da capital da cultura, porque não há projetos com maturidade.
Comigo não haverá oportunidades perdidas por falta de projetos. E as coisas começam a funcionar assim, temos de pôr a máquina a rodar. Quando visito as associações, as empresas, as pessoas que me dizem que a câmara lhes deve dinheiro, digo que não tenho um banco, sei qual é a capacidade de endividamento da câmara, estudei os processos. Temos de pôr a máquina a rodar para ter mais desenvolvimento e mais receita e com receita se pague a despesa e, pagando a despesa, possamos gerar nova receita.
E a segunda medida?
A outra coisa, além deste gabinete de projetos para termos projetos para tudo e aproveitarmos todas as oportunidades de financiamento, vamos também, porque a câmara ainda funciona muito a papel, com divisões muito espartilhadas, com projetos muito burocratizados, é desenvolver um sistema de informação integrada, essa é a minha área e sempre foi a minha área.
Criar um sistema de informação que permita saber quando um projeto não está licenciado, quando uma conta não foi paga, porque é que não foi, de quem depende, qual a justificação. Com este processo, vamos também otimizar muito o funcionamento, conto com a minha equipa e com todos os trabalhadores da câmara que o queiram fazer, vamos ultrapassar este nó górdio de uma Câmara que está, como disse há pouco, descapitalizada, desorganizada e desmotivada.
Há pouco falava na necessidade de a União Europeia se transformar, de acabar com a burocracia, a morosidade dos processos.
A Europa não se adaptou aos tempos em que é preciso decidir estratégica, mas rapidamente. Todos os processos de decisão, por exemplo os processos necessários para executar os fundos comunitários ou para executar o PRR, têm subjacente a ideia de que é a burocracia que dá solidez, que são os muitos procedimentos que dão garantia de que não há má aplicação.
Mas, pelo contrário, os processos rápidos e transparentes são muito mais fáceis de auditar e são muito mais eficazes. Quando temos ciclos de programação de fundos estruturais a cinco anos, seis anos, sete anos, por exemplo, desenhados para 2021-2027, isso significa que em 2025 estamos a aplicar regras de 2021. E o mundo mudou desde então.
Este é um dos grandes problemas da Europa, internamente e externamente. O processo de decisão da União Europeia é riquíssimo, a qualidade de decisão, a democracia, o diálogo são extraordinários, tive a oportunidade de o viver durante dez anos o trabalho do trílogo Parlamento Europeu, Conselho Europeu e Comissão Europeia. Mas tem o timing errado, não é o timing dos dias de hoje, não funciona, tem de ser alterado.
É preciso que todos queiram fazê-lo. Falta vontade política?
O nó górdio é que muita gente diz que só se pode alterar o processo de decisão mudando os tratados. A solução alternativa a ficarmos embrenhados numa mudança de tratados é usar a cabeça, ou seja, vontade política. Por exemplo, a resposta europeia à pandemia foi uma demonstração de vontade política. Mesmo a resposta inicial à invasão da Ucrânia pela Rússia, foi uma reação com vontade política, fui relator de algumas normas legislativas para ajudar a essa resposta que foram isentadas de um conjunto de procedimentos intermédios – que não retiraram nada da transparência, da participação de todos os grupos políticos, da pronúncia dos 27 estados-membros, nada disso foi prejudicado.
O primeiro relatório de minha inteira responsabilidade no Parlamento Europeu foi o WiFi4EU, lembro-me que me disseram que no mínimo seria preciso um ano. Acabou por ser um pouco menos, mas chocou-me muito ter 120 milhões de euros para uma coisa tão importante – internet gratuita em espaços públicos – e ser necessário tanto tempo.
Mas hoje, tudo o que está associado à identidade digital está um pouco atrasado. A Europa, designadamente nos últimos tempos, em vez de acelerar, tem vindo a desacelerar muito pouco, talvez também por uma certa confusão estratégica num momento em que o mundo é, ele próprio, estrategicamente confuso. Mas é preciso avançar e é preciso ir corrigindo em movimento.
Sou a favor, e já era quando tive responsabilidades a esse nível – coordenador do Plano Tecnológico ou secretário de Estado da Energia e da Inovação -, da parceria com a sociedade civil na execução dos fundos comunitários e outros.
O que é que isso significa exatamente?
Se comparar a dinâmica criada com o Plano Tecnológico, com todas as medidas do Simplex, um computador para todas as escolas (o Magalhães), a banda larga nas escolas e em todo o país, as energias renováveis, que cresceram brutalmente, só para dar alguns exemplos, foi todo um procedimento de execução de fundos nacionais e de fundos europeus, mas numa lógica de parceria com a sociedade civil.
O ciclo seguinte, de resposta à pandemia e do PRR, foi um ciclo em que há mais administração pública no sistema. Não sou contra o papel do Estado, que é fundamental, mas sou contra a poluição das regras excessivas, que são tóxicas.
Ao longo dos anos os partidos foram-se alternando no poder e, mesmo dentro dos vários partidos, houve governos completamente diferentes; trabalhei com António Costa, com o José Sócrates, com António Costa e sei bem que as coisas são diferentes.
Um adjetivo para caracterizar cada um destes governos?
Guterres: razão e coracão; Sócrates: visão; Costa: consensualização e rigor.
Do concelho para o país: António Vitorino ou António José Seguro?
Não tenho a mínima hesitação, posso mesmo dizer que antes de António José Seguro ter decidido ser candidato à Presidência da República eu incentivei-o muito a ser. Trabalhei com ele, conheço-o muito bem, fui líder parlamentar com ele, fui coordenador de um movimento novo com ele, tenho uma grande admiração pelo seu perfil de competência, de integridade, de ética.
António José Seguro tem uma grande preparação, é uma pessoa muito preparada, é professor. Fez, por exemplo, uma das maiores reformas que tivemos, a do funcionamento da Assembleia da República, foi vice-presidente do Parlamento Europeu – sei que a fama que deixou em dois anos perdurou por muito tempo, toda a gente o conhecia e sabia o que ele lá tinha feito -, portanto, conhece bem as instituições e tem competência. Depois, associa à competência o perfil ético, que ajuda muito a aumentar a credibilidade junto das pessoas.
Quando faço este tipo de análise, obviamente posso ser um pouco marcado por ser amigo, mas não é uma análise de amigo, é uma análise que procura ser isenta.
Isso vai ser suficiente para o eleger presidente da República?
Não tenho por hábito votar em quem ganha, tenho por hábito votar em quem eu quero que ganhe. De qualquer forma, embora não vá cometer aqui o exagero de comparar António José Seguro a Mário Soares, às vezes as pessoas surpreendem-nos.
Mário Soares começou com 8%, toda a gente achava que era uma loucura, que nem pensar. E ganhou. O almirante, para já, é uma pessoa alta, de olhos azuis e com farda, o que é muito apelativo do ponto de vista eleitoral, mas agora vamos ver qual é o conteúdo, o lugar também não está garantido, é preciso ser mais do que isso.
Tem mesmo? E como olha para os mandatos de Marcelo Rebelo de Sousa?
Marcelo Rebelo de Sousa esteve muito bem em todo o processo da pandemia. Mário Soares teria sido um óptimo presidente da República em contexto de pandemia. Jorge Sampaio, por quem tenho uma enorme admiração, imagino que na pandemia seria uma pessoa que estaria a sofrer connosco. Não quer dizer que Marcelo não tenha sofrido, mas conseguiu sempre puxar-nos para cima.
Marcelo Rebelo de Sousa já fez coisas boas, mas também já nos puxou para baixo muitas vezes. Acho que a sua tendência para errar e para a asneira foi subindo neste segundo mandato.
Qual foi o principal erro de Marcelo Rebelo de Sousa?
Não ter dado posse a um governo maioritário a seguir aquilo que aconteceu com António Costa.
Poder formal e magistratura de influência. O que muda realmente quando muda o presidente da República?
Em todas as actividades que têm que ver com a República, há o poder formal e há a capacidade de influenciar pela postura. O presidente da República tem mais poder ou menos poder em função da credibilidade que lhe é reconhecida na sociedade portuguesa. Marcelo Rebelo de Sousa já teve mais poder do que tem hoje e, no entanto, não mudaram as regras.
O que pensa quando olha para a Assembleia da República e para os 230 deputados, sente-se representado?
Sinto. Reconheço, no entanto, que o actual sistema tem dois problemas que deviam merecer reflexão. O primeiro é a proximidade entre os deputados e os eleitores, em particular nos grandes círculos. Um sistema de círculos uninominais complementado com um círculo nacional de restos, já foi estudado e seria uma reforma positiva.
O segundo problema é o da baixa representação das regiões menos povoadas, devido à aplicação do método de Hondt. O Alentejo, com um terço do território, elege apenas oito deputados à Assembleia da República. 30% do território, 3% dos deputados é um número que choca. Neste domínio, a solução implicaria sempre alterações constitucionais. Uma segunda câmara seguiria a prática de muitas outras democracias. A concretização da regionalização administrativa seria uma forma indirecta de compensar a distorção.
Para terminar, queria a sua opinião sobre a limitação de mandatos, de autarcas, do presidente da República, dos deputados. O que defende?
A limitação de mandatos tem vantagens e desvantagens. A renovação, no entanto, não pode ser apenas normativa. Ela só acontecerá com o vigor necessário se a política se tornar atractiva para os melhores, nas diversas áreas ideológicas. A forma de o fazer implica uma abordagem corajosa. Uma tarefa que pode ser liderada pelo próximo presidente da República, na linha dos contributos que, por exemplo, Jorge Sampaio ensaiou.
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