Fora do Baralho
As cartas da ordem mundial estão todas fora do baralho. Não adianta insistir em ler o mundo como sempre o fomos lendo, com as atualizações pertinentes. Já não se trata de mudar de lentes. É preciso reinventar o olhar e perceber as novas coordenadas e as novas regras do jogo.
Pelas minhas funções de eurodeputado, que incluem, entre muitas outras, a de ser relator permanente do Parlamento Europeu para a Ajuda Humanitária, sou levado a interiorizar e a procurar cumprir o meu dever de ajudar a resolver tudo o que de monstruoso e inesperado vai acontecendo, de forma mais ou menos visível e mediática, no mundo em que vivemos. Os desafios, mesmo à pequena escala em que posso agir, são imensos.
No recente ataque terrorista perpetrado pelo Hamas contra pessoas indefesas em Israel e em todo o processo de guerra sem quartel que se seguiu, todos os princípios do direito humanitário foram violados. As pessoas foram usadas como escudos humanos, o terror, a desinformação e a mentira foram espalhados pelas redes sem qualquer contenção, a ajuda humanitária foi dificultada até limites inaceitáveis.
Tenho lido opiniões sensatas que recomendam que, face à incerteza e mesmo à necessidade de novos modelos conceptuais de análise, as decisões e os pronunciamentos dos responsáveis políticos devem ser mais ponderados, maturados, não tão colados à pressão dos tempos mediáticos ou à voragem das redes sociais.
No plano da racionalidade concordo que a maior incerteza e complexidade, mesmo com recurso a todas as próteses cognitivas que as tecnologias hoje nos proporcionam, exigem temperança e reflexão antes de tomar e comunicar decisões, por mais bem-intencionadas que elas sejam. Decisões que se não aderirem aos objetivos, se transformam em achas para a fogueira e pasto para as cortinas de fumo que servem os que estão do outro lado da barricada.
Esta perspetiva tem, no entanto, uma objeção forte. Os primeiros a chegar ao espaço mediático e às redes sociais montam a narrativa. Uma vez montada uma narrativa, a sua desconstrução é tremendamente difícil. Um pequeno exemplo ilustra bem esta ideia.
Algumas horas após o ato terrorista do Hamas, um comissário europeu colocou numa rede social de forma precipitada (e não sei se intencional, pelo que subscrevi uma pergunta urgente à Comissão Europeia sobre este tema) que a União Europeia iria suspender a ajuda humanitária na Palestina. O contra-ataque narrativo, em que também participei, só dificilmente conseguiu reverter a imagem, embora talvez tenha ajudado a tornar mais forte o apoio de facto mobilizado para a ajuda humanitária na Faixa de Gaza.
Na defesa dos valores em que acreditamos e no cumprimento das missões que assumimos, temos que agir fora do baralho. A desistência ou a inércia não são opções. Temos que jogar as cartas que ajudam na emergência e tentar virar o jogo para que as situações terríveis a que temos assistido se repitam cada vez menos.