Lume de Chão
Os tempos de festas e transições são mais propícios à introspeção e isso tem-se refletido nas últimas crónicas que publiquei neste espaço. Esta não destoará do registo, encerrando um ciclo que não deve conseguir prevalecer mais tempo, face aos tremendos desafios políticos e sociais que se aproximam quer no plano nacional, quer no plano europeu e global e sobre os quais não deixarei de aqui partilhar o meu olhar.
As tecnologias mudaram a nossa vida e, para quem a elas pode aceder, melhoraram o conforto e a forma como criamos novos hábitos e também como reinventamos velhas tradições. Neste Natal, por conexões diversas, vieram-me à memória os tempos de infância e de adolescência, e de entre eles, uma recordação viva do lume de chão onde pela manhã se fazia o café e tostavam as torradas, ao longo do dia se cozinhavam alguns alimentos e pela noite se juntava a família, para conversar, ouvir as radionovelas na moda e mais tarde seguir as novidades no ecrã a preto e branco de um dos dois canais de TV disponíveis.
Também me recordei muito, pensando em tempo menos longínquos, das crepitantes lareiras com que aquecíamos as salas antes e depois da consoada e do inconfundível som e cheiro da lenha a arder, que também faziam parte do momento alto de convívio familiar que era a ceia de natal.
Tenho saudades de muitas das pessoas que povoam estas memórias, sobretudo das que já partiram, mas este não pretende ser apenas um texto de memórias. É também uma reflexão sobre a relação entre o contexto e o sentimento.
Olhando para trás tenho a sensação que o crepitar da lenha a arder nos acendia também por dentro de uma forma mais intensa, até porque convidava mais à aproximação de todos em torno do foco de calor e menos à dispersão de pessoas e conversas que os sistemas eficientes e sofisticados dos nossos dias propiciam e facilitam.
Será que esta relação que identifico entre uma certa “robotização” dos ambientes e o menor calor das interações também é sentida pelos que me leem e viveram os mesmos tempos e experiências? Ou será o meu “madeiro” emocional caso único?
Confesso que ao ver a alegria com que novos e maduros se associam a reconstituições genuínas das práticas de antanho, numa comunhão reforçada com a natureza na celebração da vida, sinto que não estou só nestas interrogações arrancadas da lufa-lufa em que os dias se vão esvaindo.
Crepitar (falo física e metaforicamente de lareiras, lumes de chão e similares e não de fogo descontrolado e destruidor) é viver.